Pernície
Plúmbea
"Era um dia
quente. Muito quente. Os termômetros marcavam quase 40oC,
e nada parecia ser capaz de aplacar isso. Ele saiu. Os carros na rua descreviam
seu contínuo movimento, seu eterno ciclo, interrompido apenas pela
chegada da noite ou, talvez, um conserto na rua. Pessoas transitavam de
um lado a outro, desconhecidas que caminhavam lado a lado, cada qual em
sua própria direção, em seu próprio destino.
E ele fez o mesmo, seguiu seu próprio caminho. Mas não como
os outros, pois ele não era controlado pelo destino, e sim
o destino controlado por ele. O sinal fecha, pessoas invadem o território
dos carros, motores roncam, buzinas soam. Mas aquele era um momento de
trégua. O sinal declara o fim da paz. Pedestres enxotados reclamam
às máquinas, que quando chegam em suas casas se transformam
em pessoas. O calor que emana do asfalto é quase cáustico.
Todos lutam por uma sombra, evitam o sol, o calor, o inferno. Enquanto
isso, enquanto pedestres caminham, enquanto os cervos andam em seus bandos
pela savana, os predadores estão à espreita, esperando um
deslize, um erro. Eles aguardam, alguns pacientemente, outros não,
mas todos aguardam. Escondidos, camuflados. A hora do bote, um relógio
é o prêmio. Logo mais será uma carteira, depois um
carro, depois uma vida. É a natureza agindo, a natureza que controla
o homem. Ele continua e, como os outros, também é impassível
quanto à cena. Paredes grafitadas carregam desenhos abstratos, às
vezes nomes, códigos. Proclamações de amor se misturam
à palavras de baixo nível, nomes sem significados, almas
sem rumo. Todos buscando uma solução, uma salvação
para àquela selva. E, quando estão perto de conseguir, voltam
às suas tocas, cercam-se de barras de ferro e ficam enjauladas,
presas em suas vidas sem significado. Ele continua, passa por bueiros,
esquinas. Adentra no labirinto de pedra construída para aprisionar
seus ocupantes. Adeptos às rodas andam sobre suas pranchas, seus
tênis modificados. Outros correm, dizendo a si mesmos que o fazem
para ficar bem, saudáveis. Mas correm para esquecer que estão
presos a si mesmos, às raízes que eles mesmos deixaram crescer.
Esquecer é a única saída, a única forma de
se manter saudável, de não se contaminar com a doença
que está em tudo, em todos. Alguns fogem, mas fogem acelerando seu
encontro final, seu último suspiro. Usam produtos feitos pelo homem,
alguns considerados legais, outros não. Mas todos servem apenas
para isso, fugir, esquecer. A grande caixa de concreto, que se divide em
outras internamente é seu ponto final. Pessoas chamam essas divisórias
de lar. E, embora tenham janelas, quadrados para o mundo exterior, elas
as cobrem com pesados panos, tentando se esconder. Ele pega sua encomenda
e sai. De volta à sua prisão. Lá ao menos a temperatura
se mostra mais amena. Em sua geladeira ele pega pedaços de um animal
sagrado na Índia. Abre seu pacote. Divide seu pão, nada mais
do que um monte de farinha cozida e fermentada, em dois. Esse espaço
é preenchido com as dádivas oferecidas pelo sagrado animal.
Ele, então, come seu sanduíche, agradecendo à miserável
civilização por lhe oferecer algo tão saboroso."
Tiago Stürmer Daitx